Descobrir que se está com câncer é algo muito difícil. Dá
vontade de entrar num quarto escuro, dormir e acordar somente quando tudo tiver
acabado. E perceber que foi só um pesadelo. Ao mesmo tempo em que a vontade impulsiona à inanição, é hora de
empreender uma corrida contra o tempo que pode se traduzir na cura definitiva.
Quando descobri que estava com um câncer de mama, aos 36
anos, sabia que teria um longo e doloroso caminho pela frente. Já havia perdido
minha mãe na luta contra essa doença quando eu tinha 22 anos. Sem que ninguém
me dissesse nada eu sabia que teria que passar por uma cirurgia e tratamento
quimioterápico, minimamente. Sabia que perderia todos os cabelos. Sabia que
corria o risco de perder meus linfonodos e ter minha circulação linfática do
braço direito prejudicada para sempre, e sentir dores, como ocorrera com minha
mãe no passado. Sabia que poderia não ser curada e corria o risco de travar uma
luta inglória que me faria sofrer meus últimos anos de vida. Sabia que, mesmo
sem querer, poderia deixar meu filho órfão de mãe e meu marido viúvo.
E só de pensar em tudo isso, eu sentia um profundo desânimo,
uma vontade tremenda de dormir o inteiro e acordar somente quando
tudo estivesse terminado. Eu não queria ter que viver tudo o que eu seria
obrigada a vivenciar a partir daquele momento. Era uma sensação estranha, como
se num momento eu tivesse entrado numa clínica médica, tivesse sido aprisionada
ali, empurrada para um túnel muito escuro, e obrigada ser submetida a
tratamentos dolorosos, sem qualquer chance de escolha. Algo como se, de mulher
livre, eu tivesse minha condição mudada para a de escrava. De pessoa autônoma,
de repente, fui presa e guiada ao corredor da morte, sem possibilidade de volta.
De qualquer forma, embora minha vontade fosse me jogar na
cama, apagar as luzes e morrer ali, também sabia que era o momento de, contra
todo o meu desânimo, empreender uma maratona contra o tempo em busca do melhor
tratamento, o mais rápido possível. O tempo trabalha a favor da doença e contra
o paciente.
Se você não me conhece, é importante dizer que sou uma
pessoa independente, autônoma, às vezes até demais. Quase todas as pessoas que conheci e
sobre as quais eu li, relataram que, no momento em que receberam um diagnóstico de
câncer, sentiram o chão fugir de sob seus pés, ou sentiram que tudo ficou
escuro, ou mergulharam num abismo e as vozes ao redor se tornaram
inaudíveis. Elas se lembravam muito pouco das orientações que
receberam naquele momento.
Comigo aconteceu de sentir o chão fugindo. Fechei os olhos,
baixei minha cabeça, e disse mentalmente: “Chão, você precisa voltar! Eu
preciso de você! Estou sozinha! Não posso me perder agora!” E consegui senti-lo novamente, como se eu tivesse puxado a
mola, ou o elástico onde ele estava preso.
Mantenho uma boa lembrança da conversa que tive com o
médico, das orientações recebidas, dos pedidos de exames que eu teria que fazer
em caráter de urgência, e de como tudo era incerto naquele momento. O
encaminhamento do meu tratamento dependia de alguns fatores, como o tipo do
tumor. Manter os linfonodos dependia deles estarem livre ou contaminados, e
ainda da postura do médico. Cirurgia radical ou conservadora dependia do
tamanho e localização do tumor, e da postura do médico. Reconstruir a mama antes ou depois dependia de
saber que tipo de tratamento eu teria que fazer, e da postura do médico. Se o tratamento iria começar
com a cirurgia ou a quimioterapia, dependia de uma consulta com um oncologista e
o resultado de alguns exames. Tudo dependia de alguma coisa. Tudo era
incerto. Eu me encontrava numa encruzilhada.
E tanta incerteza numa sexta-feira quase mata um ser humano
ansioso como eu. Tinha um sábado e um domingo no meio de tantas coisas a fazer,
que chegava a dar raiva. Eu acabara de saber que estava com câncer, mas todas
as clínicas fechavam aos sábados. O mundo não alterava seu curso por causa do
meu sofrimento. Nem do meu e nem de ninguém.
Descobri meu lado prático. Saí da consulta já fazendo
algumas ligações: contei ao meu marido, e à minha chefe, porque eu não poderia
voltar ao trabalho como havia planejado. Telefonei a algumas clínicas e agendei
os próximos exames. Marquei a consulta com o oncologista indicado por meu
mastologista. E fui ao meu plano de saúde para saber que tipo de cobertura eu
teria durante o tratamento. Tudo isso na mesma sexta-feira do diagnóstico.
Naquela noite consegui dormir. Tinha a consciência tranquila por ter feito tudo
o que havia sido possível naquele dia.
Passei o fim de semana com um misto de vontade de me
entregar ao desânimo, uma exasperação por ter que esperar pela segunda-feira para fazer algo e milhares de pontos de interrogação flutuando na minha cabeça: e
agora? O que vai ser do meu filhinho quando eu estiver operada? Vou operar primeiro
ou fazer quimioterapia? Terei que tirar a mama toda ou só uma parte? Reconstruo agora
ou depois? Conto pra família ou não conto? Conto para os amigos ou não? Conto
agora ou depois? Que droga ter tantas dúvidas e nenhuma resposta...
Meus próximos dias foram de busca de indicações de
oncologistas, de mastologistas, de cirurgiões plásticos, de clínicas... Pensava
que seu dissesse: “Preciso de uma consulta urgente. Tenho câncer!” as vagas nas
agendas médicas surgiriam dada a gravidade da doença. Mas não era nada disso.
Havia clínicas que me ofereciam uma fila de espera de 6 meses por uma consulta
com um oncologista. Como se um paciente com essa doença pudesse se dar ao luxo de
aguardar 6 meses...
Eu buscava a opinião de vários profissionais. Peguei um
caderno e anotei as informações que meu mastologista havia me passado. Anotei
também o que senti durante a consulta. Fiz isso ao final de todas as consultas.
E no intervalo entre elas eu me submetia a exames. Quando um médico me
informava algo novo, eu fazia perguntas relacionadas aquela informação ao
próximo médico. Todas as noites eu relia minhas anotações e tentava fazer um
balanço dos meus sentimentos. Foi assim que comecei a duvidar do meu
mastologista, e do oncologista indicado por ele. Não tinha dúvidas relacionadas
a competência de ambos, mas não me sentia segura nas mãos deles.
Me sentia ansiosa por iniciar minha batalha contra a doença.
Ainda não sabia se faria a cirurgia primeiro ou iniciaria com a quimioterapia.
As opiniões médicas divergiam um pouco sobre esse ponto. E que droga de hora
para trocar de médico, para duvidar do profissional que conhecia meu histórico,
e que me conhecia...
Como não tenho parentes em Curitiba, cidade onde moro, e meu marido trabalhava o dia todo, meu
filhinho ficava na escola, e eu ia sozinha às
consultas e aos exames. Nas filas de espera tinha muito tempo para pensar,
refletir, e até para conhecer pessoas com câncer que estavam vivendo a mesma
angústia que eu. Quando chegava em casa à noite, meu marido me perguntava:
- E daí, encontrou seu médico?
- Ainda não.
Após uns 10 dias de busca, inúmeras consultas e exames,
encontrei a equipe que iria me operar.
Como escolhi?
Em minhas anotações eu sempre escrevia o que não havia
gostado em cada profissional: em alguns era o radicalismo; em outros ainda, a mentalidade antiga. Minha mãe havia sido
submetida à mastectomia radical sem reconstrução mamária. Ela sofria muito com a
mutilação. Onde antes tinha um seio, havia ficado um buraco com uma cicatriz
medonha. Eu me lembrava bem do sofrimento dela. Outro detalhe: ela detectou seu
câncer em estado muito avançado. Perdeu todos os seus linfonodos do braço direito. Todos os dias
eu a encontrava sentada num sofá apoiando o braço numa pilha de almofadas para
elevá-lo a fim de aliviar as dores de um linfedema. Só que isso havia
acontecido há quase 15 anos. O século XX tinha acabado e ainda havia médicos
querendo realizar em mim o mesmo tipo de cirurgia. “Primeiro se trata a doença.
Estética se vê depois.”
Estética o cacete!!!!
Não dava para crer que com tanta tecnologia nada havia
mudado nos últimos 15 anos com relação ao tratamento de câncer de mama. Eu não
conseguia acreditar nisso. Ainda bem! E busquei, até encontrar, uma equipe médica cujo
pensamento estivesse alinhado com o meu: uma mulher jovem enfrenta melhor o
tratamento com a mama reconstruída.
E pra mim, mulher independente que havia perdido toda a sua
autonomia desde o diagnóstico da doença, fiz questão de participar das decisões
relacionadas ao meu tratamento. Minha equipe médica me apresentou as
alternativas e eu fiz escolhas que foram respeitadas: escolhi uma cirurgia em
que a glândula mamária toda fosse removida, ao invés de uma cirurgia
conservadora (e essa decisão se mostrou muito acertada, posteriormente); se
houvesse possibilidade de se preservar a pele da mama, mamilos e linfonodos,
que eles fossem preservados; e a reconstrução seria feita com um músculo
abdominal e não com prótese mamária, numa única cirurgia.
A possibilidade de exercer escolhas representou uma pequena
ilha de autonomia num mar de servidão no qual eu mergulhara involuntariamente. E autonomia, no universo do câncer, é artigo de alto luxo!
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