segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A Encruzilhada


Descobrir que se está com câncer é algo muito difícil. Dá vontade de entrar num quarto escuro, dormir e acordar somente quando tudo tiver acabado. E perceber que foi só um pesadelo. Ao mesmo tempo em que a vontade impulsiona à inanição, é hora de empreender uma corrida contra o tempo que pode se traduzir na cura definitiva.
 
 
 
 

Quando descobri que estava com um câncer de mama, aos 36 anos, sabia que teria um longo e doloroso caminho pela frente. Já havia perdido minha mãe na luta contra essa doença quando eu tinha 22 anos. Sem que ninguém me dissesse nada eu sabia que teria que passar por uma cirurgia e tratamento quimioterápico, minimamente. Sabia que perderia todos os cabelos. Sabia que corria o risco de perder meus linfonodos e ter minha circulação linfática do braço direito prejudicada para sempre, e sentir dores, como ocorrera com minha mãe no passado. Sabia que poderia não ser curada e corria o risco de travar uma luta inglória que me faria sofrer meus últimos anos de vida. Sabia que, mesmo sem querer, poderia deixar meu filho órfão de mãe e meu marido viúvo. 
E só de pensar em tudo isso, eu sentia um profundo desânimo, uma vontade tremenda de dormir o inteiro e acordar somente quando tudo estivesse terminado. Eu não queria ter que viver tudo o que eu seria obrigada a vivenciar a partir daquele momento. Era uma sensação estranha, como se num momento eu tivesse entrado numa clínica médica, tivesse sido aprisionada ali, empurrada para um túnel muito escuro, e obrigada ser submetida a tratamentos dolorosos, sem qualquer chance de escolha. Algo como se, de mulher livre, eu tivesse minha condição mudada para a de escrava. De pessoa autônoma, de repente, fui presa e guiada ao corredor da morte, sem possibilidade de volta.
De qualquer forma, embora minha vontade fosse me jogar na cama, apagar as luzes e morrer ali, também sabia que era o momento de, contra todo o meu desânimo, empreender uma maratona contra o tempo em busca do melhor tratamento, o mais rápido possível. O tempo trabalha a favor da doença e contra o paciente.
Se você não me conhece, é importante dizer que sou uma pessoa independente, autônoma, às vezes até demais. Quase todas as pessoas que conheci e sobre as quais eu li, relataram que, no momento em que receberam um diagnóstico de câncer, sentiram o chão fugir de sob seus pés, ou sentiram que tudo ficou escuro, ou mergulharam num abismo e as vozes ao redor se tornaram inaudíveis. Elas se lembravam muito pouco das orientações que receberam naquele momento.
Comigo aconteceu de sentir o chão fugindo. Fechei os olhos, baixei minha cabeça, e disse mentalmente: “Chão, você precisa voltar! Eu preciso de você! Estou sozinha! Não posso me perder agora!” E consegui senti-lo novamente, como se eu tivesse puxado a mola, ou o elástico onde ele estava preso.
Mantenho uma boa lembrança da conversa que tive com o médico, das orientações recebidas, dos pedidos de exames que eu teria que fazer em caráter de urgência, e de como tudo era incerto naquele momento. O encaminhamento do meu tratamento dependia de alguns fatores, como o tipo do tumor. Manter os linfonodos dependia deles estarem livre ou contaminados, e ainda da postura do médico. Cirurgia radical ou conservadora dependia do tamanho e localização do tumor, e da postura do médico. Reconstruir a mama antes ou depois dependia de saber que tipo de tratamento eu teria que fazer, e da postura do médico. Se o tratamento iria começar com a cirurgia ou a quimioterapia, dependia de uma consulta com um oncologista e o resultado de alguns exames. Tudo dependia de alguma coisa. Tudo era incerto. Eu me encontrava numa encruzilhada.
E tanta incerteza numa sexta-feira quase mata um ser humano ansioso como eu. Tinha um sábado e um domingo no meio de tantas coisas a fazer, que chegava a dar raiva. Eu acabara de saber que estava com câncer, mas todas as clínicas fechavam aos sábados. O mundo não alterava seu curso por causa do meu sofrimento. Nem do meu e nem de ninguém.
Descobri meu lado prático. Saí da consulta já fazendo algumas ligações: contei ao meu marido, e à minha chefe, porque eu não poderia voltar ao trabalho como havia planejado. Telefonei a algumas clínicas e agendei os próximos exames. Marquei a consulta com o oncologista indicado por meu mastologista. E fui ao meu plano de saúde para saber que tipo de cobertura eu teria durante o tratamento. Tudo isso na mesma sexta-feira do diagnóstico. Naquela noite consegui dormir. Tinha a consciência tranquila por ter feito tudo o que havia sido possível naquele dia.
Passei o fim de semana com um misto de vontade de me entregar ao desânimo, uma exasperação por ter que esperar pela segunda-feira para fazer algo e milhares de pontos de interrogação flutuando na minha cabeça: e agora? O que vai ser do meu filhinho quando eu estiver operada? Vou operar primeiro ou fazer quimioterapia? Terei que tirar a mama toda ou só uma parte? Reconstruo agora ou depois? Conto pra família ou não conto? Conto para os amigos ou não? Conto agora ou depois? Que droga ter tantas dúvidas e nenhuma resposta...
Meus próximos dias foram de busca de indicações de oncologistas, de mastologistas, de cirurgiões plásticos, de clínicas... Pensava que seu dissesse: “Preciso de uma consulta urgente. Tenho câncer!” as vagas nas agendas médicas surgiriam dada a gravidade da doença. Mas não era nada disso. Havia clínicas que me ofereciam uma fila de espera de 6 meses por uma consulta com um oncologista. Como se um paciente com essa doença pudesse se dar ao luxo de aguardar 6 meses...
Eu buscava a opinião de vários profissionais. Peguei um caderno e anotei as informações que meu mastologista havia me passado. Anotei também o que senti durante a consulta. Fiz isso ao final de todas as consultas. E no intervalo entre elas eu me submetia a exames. Quando um médico me informava algo novo, eu fazia perguntas relacionadas aquela informação ao próximo médico. Todas as noites eu relia minhas anotações e tentava fazer um balanço dos meus sentimentos. Foi assim que comecei a duvidar do meu mastologista, e do oncologista indicado por ele. Não tinha dúvidas relacionadas a competência de ambos, mas não me sentia segura nas mãos deles.
Me sentia ansiosa por iniciar minha batalha contra a doença. Ainda não sabia se faria a cirurgia primeiro ou iniciaria com a quimioterapia. As opiniões médicas divergiam um pouco sobre esse ponto. E que droga de hora para trocar de médico, para duvidar do profissional que conhecia meu histórico, e que me conhecia...
Como não tenho parentes em Curitiba, cidade onde moro, e meu marido trabalhava o dia todo, meu filhinho ficava na escola, e eu ia sozinha às consultas e aos exames. Nas filas de espera tinha muito tempo para pensar, refletir, e até para conhecer pessoas com câncer que estavam vivendo a mesma angústia que eu. Quando chegava em casa à noite, meu marido me perguntava:
- E daí, encontrou seu médico?
- Ainda não.
Após uns 10 dias de busca, inúmeras consultas e exames, encontrei a equipe que iria me operar.
Como escolhi?
Em minhas anotações eu sempre escrevia o que não havia gostado em cada profissional: em alguns era o radicalismo; em outros ainda, a mentalidade antiga. Minha mãe havia sido submetida à mastectomia radical sem reconstrução mamária. Ela sofria muito com a mutilação. Onde antes tinha um seio, havia ficado um buraco com uma cicatriz medonha. Eu me lembrava bem do sofrimento dela. Outro detalhe: ela detectou seu câncer em estado muito avançado. Perdeu todos os seus linfonodos do braço direito. Todos os dias eu a encontrava sentada num sofá apoiando o braço numa pilha de almofadas para elevá-lo a fim de aliviar as dores de um linfedema. Só que isso havia acontecido há quase 15 anos. O século XX tinha acabado e ainda havia médicos querendo realizar em mim o mesmo tipo de cirurgia. “Primeiro se trata a doença. Estética se vê depois.”
Estética o cacete!!!!
Não dava para crer que com tanta tecnologia nada havia mudado nos últimos 15 anos com relação ao tratamento de câncer de mama. Eu não conseguia acreditar nisso. Ainda bem! E busquei, até encontrar, uma equipe médica cujo pensamento estivesse alinhado com o meu: uma mulher jovem enfrenta melhor o tratamento com a mama reconstruída.
E pra mim, mulher independente que havia perdido toda a sua autonomia desde o diagnóstico da doença, fiz questão de participar das decisões relacionadas ao meu tratamento. Minha equipe médica me apresentou as alternativas e eu fiz escolhas que foram respeitadas: escolhi uma cirurgia em que a glândula mamária toda fosse removida, ao invés de uma cirurgia conservadora (e essa decisão se mostrou muito acertada, posteriormente); se houvesse possibilidade de se preservar a pele da mama, mamilos e linfonodos, que eles fossem preservados; e a reconstrução seria feita com um músculo abdominal e não com prótese mamária, numa única cirurgia.
A possibilidade de exercer escolhas representou uma pequena ilha de autonomia num mar de servidão no qual eu mergulhara involuntariamente. E autonomia, no universo do câncer, é artigo de alto luxo!

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