sábado, 30 de agosto de 2014

Estou Com Câncer! E agora?

Um plano de vôo ao paciente de primeira viagem, com dicas que nunca me deram, com meus erros e acertos...

 
SEMPRE A VERDADE:
Diga sempre a verdade às pessoas que você ama e que te amam, e às que estão cuidando de você. Sempre com carinho e respeito, de acordo com seu nível de entendimento.
O câncer não é uma doença muito fácil de se esconder por causa da duração e consequências do tratamento. Se o seu estilo for discreto, mantenha discrição, não se exponha, mas seja verdadeiro com as pessoas ao seu lado.
A verdade liberta, enquanto tentar esconder ou disfarçar o problema e suas consequências demanda uma energia que será preciosa no enfrentamento da doença.
Nesse quesito eu errei feio pela forma como eu usei a verdade.
Logo que recebi meu diagnóstico da doença e saí da clínica, precisava avisar o pessoal do trabalho que não retornaria naquele dia. Não passou pela minha cabeça que eu poderia simplesmente dizer: "Tive uma emergência e volto mais tarde."
Então resolvi ligar para o meu marido, coitado, que estava num evento do trabalho e disse a ele mais ou menos assim:
- Marido, como meu companheiro, você tem o direito de saber essa notícia em primeiro lugar - estou com câncer de mama!
Judiação! Até hoje, quando me lembro disso, penso: "Meu Deus, quanta insensibilidade da minha parte!!!!"
 
FAMILIARES E AMIGOS:
Nesse momento você pode querer conversar com alguém, falar de seus sentimentos, ou pode querer calar, ficar quieto e não tocar no assunto. Seja qual for a sua escolha, sinalize-a aos seus familiares e amigos para que a respeitem.
Se esse é um momento muito difícil para você, também será para sua família e pessoas que o amam. Todo mundo sofre junto e fica perdido: sabe que o paciente precisa de ajuda mas não sabe como ajudar.
Peça a ajuda que precisar, porque ninguém tem bola de cristal para adivinhar o que a gente está precisando: se é de companhia, de conversa, de ausência, de silêncio...
 
PEÇA AJUDA:
Câncer é uma doença que pode incapacitar o paciente, temporariamente, para uma série de atividades. O tratamento em si já é difícil, o que se dirá de tentar atravessar esse período todo sem ajuda. Essa doença sinaliza com letras gigantes, em neon, e uma porção de luzes pisca-pisca: "PEÇA AJUDA!"
Quando se recebe o diagnóstico, enquanto se investiga o caso, antes do início do tratamento, naquele período de purgatório em que as dúvidas e insegurança proliferam, você pode não se sentir bem para fazer uma série de coisas...
Mas pedir ajuda para que, exatamente?
  • Se não se sentir bem para ir ao médico ou aos exames sozinho,peça a companhia de um familiar ou um amigo com quem você se sente bem e seguro. Mas deixe claro o que você espera dele: se quer conversar sobre o assunto ou não, se quer que ele fale de outras coisas para distrai-lo;
  • Pode ser a ajuda de pessoas de sua confiança, que você considera mais esclarecidas e que possam buscar informações complementares às de seu médico para auxiliá-lo nas consultas;
  • Pode ser um colo, um ombro para chorar, para desabafar, alguém que te ouça;
  • Pode ser silêncio, se não se sentir bem em falar ou ouvir;
  • Pode ser companhia, ou recolhimento;
  • Pode ser aconselhamento ou somente presença de alguém ao seu lado sem falar nada;
  • Pode ser um abraço, ou mãos dadas para transmitir cuidado, carinho;
  • E tudo o mais que seu coração pedir...
Mesmo sendo bastante independente, precisei de ajuda.
Nessa primeira fase, de investigações, eu gostava de ir sozinha.aos médicos e aos exames Tinha tempo para pensar, refletir, escrever, pesquisar...
Que tipo de ajuda eu pedi?
Foram muitas:
Pedi a uma grande amiga que havia tido câncer e adorava sua equipe médica, que me indicasse os profissionais que haviam tomado conta dela. Também pedi sua ajuda para me conseguir uma consulta com sua mastologista em caráter de urgência. E deu certo, graças à ajuda dela, senão eu teria que enfrentar fila de espera por um horário na agenda.
Decidi partilhar a informação com um grupo de amigos, aqueles que eu gostaria de ter ao meu lado enquanto durasse a minha batalha.
Selecionei o grupo e enviei a eles o e-mail que segue copiado abaixo no dia 04/12/2009:
"Olá, Amigos e Amigas!
"O cavalo prepara-se para o dia da batalha, mas vem do Senhor a vitória." (Provérbios 21, 31)
Este Natal será bem diferente de todos os demais para toda a minha família.
Há poucos dias descobri que estou com câncer de mama.
Estou me preparando para uma cirurgia antes do Natal.
Emocionalmente estou bem, tenho mantido a tranquilidade e uma firme convicção de que vou sarar.
Um grande abraço,
Fá"
Esse foi um pedido de apoio emocional. Recebi muitíssimas manifestações de carinho como mensagens, telefonemas e visitas de pessoas que não via há muito tempo. E que se não fosse pela doença, continuaria sem vê-las.
Vários amigos me adotaram e se fizeram presentes durante todo o tempo que durou meu tratamento, até que eu estivesse já com a saúde restabelecida.
 
ANOTAÇÕES:
Uma boa ideia é fazer anotações das informações recebidas, seja numa caderneta, num bloco, num tablet ou num celular. Mantenha essas anotações consigo e anote as dúvidas que surgirem ao longo de seus dias para não se esquecer de esclarecê-las com seu médico na próxima consulta.
Se não souber mais o que perguntar ao médico, diga a ele: “Doutor, há mais alguma coisa que eu precise saber?”
Eu adoro escrever, de preferência, em cadernos, cadernetas, com uma caneta de ponta grossa. Peguei um caderno velho e anotei tudo o que os médicos me disseram.
Em seguida anotei as dúvidas que surgiram depois.
Ao final, anotei meus sentimentos.
Meu grande erro foi ter jogado esse caderno fora depois que tudo passou.
Se anotar, guarde!
INFORME-SE:
Pesquise, busque informações sobre o seu tipo de câncer. De preferência em fontes confiáveis. Há vários sites de hospitais e instituições especializadas no tratamento da doença, em português, inglês e outros idiomas.
Aqui mesmo no blog, em Links Úteis e Interessantes, há sugestões de alguns. No Facebook há muitos outros.
Quanto mais se informar, terá mais condições de conversar com seu médico e assumir uma postura mais ativa durante seu tratamento.
Sugiro o site do Instituto Oncoguia, que é totalmente voltado para o paciente, apenas como início:
DIÁRIO DE SENTIMENTOS:
Você pode manter um diário de sentimentos, emoções, percepções.
Em alguns dias eu anotava que estava confiante e tinha certeza de que eu somente teria que passar por todo o tratamento, mas que ao final, estaria curada.
Em outros, eu sentia medo, insegurança, tristeza, raiva, desânimo, cansaço...
Foi através desse diário de sentimentos e percepções que eu consegui enxergar as luzes de alerta da minha intuição em meio a um turbilhão de sentimentos, muitas vezes contraditórios, e decidi trocar o mastologista.
Não me tratei com o mastologista que me acompanhava há anos pelo seguinte: na época, ele queria que eu fizesse quimioterapia primeiro, e fosse submetida à cirurgia posteriormente. Todos os oncologistas que consultei foram unânimes em dizer que um paciente se recupera de uma cirurgia melhor e mais rápido antes de fazer a quimio, tamanhas são as consequências desse tipo de tratamento.
Comecei a desconfiar que meu médico não queria se comprometer com meu pós-operatório em época de férias, de festas de final de ano. Se eu começasse com a quimio ele ganharia tempo para me operar depois.
Troquei de equipe e fui operada no dia 17 de dezembro de 2009, exatos 20 dias após ter recebido o diagnóstico. Na primeira semana de janeiro de 2010 recebi uma ligação da secretária do mastologista antigo me perguntando se eu não iria começar meu tratamento. Acho que ele tinha retornado das férias...
 
ESCOLHAS:
No momento em que se recebe esse tipo de diagnóstico as pessoas costumam se desesperar, perder o chão, e aí se agarram ao primeiro médico que veem à frente como se ele fosse a única tábua da salvação.
Se você tiver a oportunidade de escolher seu médico oncologista, escolha. Você não precisa se tratar com o primeiro médico com quem se consultar.
Escolha aquele que te transmite mais segurança e com quem você se sente bem em conversar, porque o relacionamento de vocês será como um casamento. O médico que conduzir seu tratamento deverá te acompanhar por toda a sua vida, que eu espero que seja longa e feliz.
Eu troquei meu médico, e me sinto abençoada por estar com a equipe que me cuida já há quase 5 anos.
 
RADIOTERAPIA:
Dependendo do número de sessões e área de abrangência a radioterapia pode deixar sequelas irreversíveis.
Converse com seu médico sobre a possibilidade de se adotar uma linha de tratamento que seja eficaz e não envolva radioterapia, se for possível.
Se não for, bola pra frente! Mas o momento de saber esse tipo de informação é antes de qualquer cirurgia.
 
PLANO DE SAÚDE:
Verifique o tipo de cobertura que seu plano de saúde oferece para esse tipo de tratamento que costuma ser de alto custo. A partir de agora serão necessários muitos exames -alguns de custo altíssimo. Podem ser necessárias sessões de quimioterapia e/ou radioterapia, ambos de custo elevado. E ainda há que se considerar que poderão ser necessários alguns suplementos durante o tratamento quimioterápico para garantir um mínimo de conforto ao paciente. E esses suplementos costumam custar caro e não ter nenhum tipo de cobertura por parte dos planos de saúde.
Meu intestino parou de funcionar na primeira sessão de quimioterapia. Meu tratamento quimioterápico durou cerca de 5 meses. Durante todo esse período usei caixas e mais caixas de lactobacilos importados do Japão. Funcionou! E gastei $$$$$
 
SÓ PARA MULHERES:
Meninas, chorei muito por meus cabelos antes deles começarem a cair e eu raspá-los. Depois eu me senti até bela na condição de careca. Não usei lenços porque não combinavam comigo. Eu usava bonés e chapéus porque sentia muito frio na cabeça.
Mas a questão é outra: com o passar do tempo eu descobri que as sobrancelhas fazem mais falta do que os cabelos. Os fios vão caindo ao longo do tratamento e depois de umas 3 sessões eu já não tinha mais sobrancelhas e nem cílios. E a falta delas detona o visual! Já não me achava mais bonita. Sem sobrancelhas, com o rosto inchado, me sentia realmente doente, com câncer.
Então, se eu puder lhes deixar uma recomendação que eu gostaria de ter sabido lá atrás, quando tudo começou, seria esse: cuidem de suas sobrancelhas!
Você podem fazê-las definitivas, caso necessitem de quimioterapia. E a hora de se fazer isso é quando se define o tipo de tratamento que você terá pela frente.
Eu tenho uma prima irmã queridíssima que descobriu um câncer de mama no final do ano passado. Tive oportunidade de conversar com ela sobre todos esses assuntos que estou escrevendo aqui. Também como eu, ela operou mais ou menos 20 dias após receber seu diagnóstico. Durante sua recuperação cirúrgica ela providenciou sobrancelhas definitivas que, aliás, ficaram lindíssimas!
Tive oportunidade de visitá-la durante a quimioterapia. Os cabelos caíram, mas a expressão dela se manteve infinitamente melhor que a minha.
Só por curiosidade, vejam o post "Cabelo é o de menos!" postado aqui no blog no dia 21/08/2014. Há várias fotos feitas durante meu tratamento. Com e sem sobrancelhas! 

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A Encruzilhada


Descobrir que se está com câncer é algo muito difícil. Dá vontade de entrar num quarto escuro, dormir e acordar somente quando tudo tiver acabado. E perceber que foi só um pesadelo. Ao mesmo tempo em que a vontade impulsiona à inanição, é hora de empreender uma corrida contra o tempo que pode se traduzir na cura definitiva.
 
 
 
 

Quando descobri que estava com um câncer de mama, aos 36 anos, sabia que teria um longo e doloroso caminho pela frente. Já havia perdido minha mãe na luta contra essa doença quando eu tinha 22 anos. Sem que ninguém me dissesse nada eu sabia que teria que passar por uma cirurgia e tratamento quimioterápico, minimamente. Sabia que perderia todos os cabelos. Sabia que corria o risco de perder meus linfonodos e ter minha circulação linfática do braço direito prejudicada para sempre, e sentir dores, como ocorrera com minha mãe no passado. Sabia que poderia não ser curada e corria o risco de travar uma luta inglória que me faria sofrer meus últimos anos de vida. Sabia que, mesmo sem querer, poderia deixar meu filho órfão de mãe e meu marido viúvo. 
E só de pensar em tudo isso, eu sentia um profundo desânimo, uma vontade tremenda de dormir o inteiro e acordar somente quando tudo estivesse terminado. Eu não queria ter que viver tudo o que eu seria obrigada a vivenciar a partir daquele momento. Era uma sensação estranha, como se num momento eu tivesse entrado numa clínica médica, tivesse sido aprisionada ali, empurrada para um túnel muito escuro, e obrigada ser submetida a tratamentos dolorosos, sem qualquer chance de escolha. Algo como se, de mulher livre, eu tivesse minha condição mudada para a de escrava. De pessoa autônoma, de repente, fui presa e guiada ao corredor da morte, sem possibilidade de volta.
De qualquer forma, embora minha vontade fosse me jogar na cama, apagar as luzes e morrer ali, também sabia que era o momento de, contra todo o meu desânimo, empreender uma maratona contra o tempo em busca do melhor tratamento, o mais rápido possível. O tempo trabalha a favor da doença e contra o paciente.
Se você não me conhece, é importante dizer que sou uma pessoa independente, autônoma, às vezes até demais. Quase todas as pessoas que conheci e sobre as quais eu li, relataram que, no momento em que receberam um diagnóstico de câncer, sentiram o chão fugir de sob seus pés, ou sentiram que tudo ficou escuro, ou mergulharam num abismo e as vozes ao redor se tornaram inaudíveis. Elas se lembravam muito pouco das orientações que receberam naquele momento.
Comigo aconteceu de sentir o chão fugindo. Fechei os olhos, baixei minha cabeça, e disse mentalmente: “Chão, você precisa voltar! Eu preciso de você! Estou sozinha! Não posso me perder agora!” E consegui senti-lo novamente, como se eu tivesse puxado a mola, ou o elástico onde ele estava preso.
Mantenho uma boa lembrança da conversa que tive com o médico, das orientações recebidas, dos pedidos de exames que eu teria que fazer em caráter de urgência, e de como tudo era incerto naquele momento. O encaminhamento do meu tratamento dependia de alguns fatores, como o tipo do tumor. Manter os linfonodos dependia deles estarem livre ou contaminados, e ainda da postura do médico. Cirurgia radical ou conservadora dependia do tamanho e localização do tumor, e da postura do médico. Reconstruir a mama antes ou depois dependia de saber que tipo de tratamento eu teria que fazer, e da postura do médico. Se o tratamento iria começar com a cirurgia ou a quimioterapia, dependia de uma consulta com um oncologista e o resultado de alguns exames. Tudo dependia de alguma coisa. Tudo era incerto. Eu me encontrava numa encruzilhada.
E tanta incerteza numa sexta-feira quase mata um ser humano ansioso como eu. Tinha um sábado e um domingo no meio de tantas coisas a fazer, que chegava a dar raiva. Eu acabara de saber que estava com câncer, mas todas as clínicas fechavam aos sábados. O mundo não alterava seu curso por causa do meu sofrimento. Nem do meu e nem de ninguém.
Descobri meu lado prático. Saí da consulta já fazendo algumas ligações: contei ao meu marido, e à minha chefe, porque eu não poderia voltar ao trabalho como havia planejado. Telefonei a algumas clínicas e agendei os próximos exames. Marquei a consulta com o oncologista indicado por meu mastologista. E fui ao meu plano de saúde para saber que tipo de cobertura eu teria durante o tratamento. Tudo isso na mesma sexta-feira do diagnóstico. Naquela noite consegui dormir. Tinha a consciência tranquila por ter feito tudo o que havia sido possível naquele dia.
Passei o fim de semana com um misto de vontade de me entregar ao desânimo, uma exasperação por ter que esperar pela segunda-feira para fazer algo e milhares de pontos de interrogação flutuando na minha cabeça: e agora? O que vai ser do meu filhinho quando eu estiver operada? Vou operar primeiro ou fazer quimioterapia? Terei que tirar a mama toda ou só uma parte? Reconstruo agora ou depois? Conto pra família ou não conto? Conto para os amigos ou não? Conto agora ou depois? Que droga ter tantas dúvidas e nenhuma resposta...
Meus próximos dias foram de busca de indicações de oncologistas, de mastologistas, de cirurgiões plásticos, de clínicas... Pensava que seu dissesse: “Preciso de uma consulta urgente. Tenho câncer!” as vagas nas agendas médicas surgiriam dada a gravidade da doença. Mas não era nada disso. Havia clínicas que me ofereciam uma fila de espera de 6 meses por uma consulta com um oncologista. Como se um paciente com essa doença pudesse se dar ao luxo de aguardar 6 meses...
Eu buscava a opinião de vários profissionais. Peguei um caderno e anotei as informações que meu mastologista havia me passado. Anotei também o que senti durante a consulta. Fiz isso ao final de todas as consultas. E no intervalo entre elas eu me submetia a exames. Quando um médico me informava algo novo, eu fazia perguntas relacionadas aquela informação ao próximo médico. Todas as noites eu relia minhas anotações e tentava fazer um balanço dos meus sentimentos. Foi assim que comecei a duvidar do meu mastologista, e do oncologista indicado por ele. Não tinha dúvidas relacionadas a competência de ambos, mas não me sentia segura nas mãos deles.
Me sentia ansiosa por iniciar minha batalha contra a doença. Ainda não sabia se faria a cirurgia primeiro ou iniciaria com a quimioterapia. As opiniões médicas divergiam um pouco sobre esse ponto. E que droga de hora para trocar de médico, para duvidar do profissional que conhecia meu histórico, e que me conhecia...
Como não tenho parentes em Curitiba, cidade onde moro, e meu marido trabalhava o dia todo, meu filhinho ficava na escola, e eu ia sozinha às consultas e aos exames. Nas filas de espera tinha muito tempo para pensar, refletir, e até para conhecer pessoas com câncer que estavam vivendo a mesma angústia que eu. Quando chegava em casa à noite, meu marido me perguntava:
- E daí, encontrou seu médico?
- Ainda não.
Após uns 10 dias de busca, inúmeras consultas e exames, encontrei a equipe que iria me operar.
Como escolhi?
Em minhas anotações eu sempre escrevia o que não havia gostado em cada profissional: em alguns era o radicalismo; em outros ainda, a mentalidade antiga. Minha mãe havia sido submetida à mastectomia radical sem reconstrução mamária. Ela sofria muito com a mutilação. Onde antes tinha um seio, havia ficado um buraco com uma cicatriz medonha. Eu me lembrava bem do sofrimento dela. Outro detalhe: ela detectou seu câncer em estado muito avançado. Perdeu todos os seus linfonodos do braço direito. Todos os dias eu a encontrava sentada num sofá apoiando o braço numa pilha de almofadas para elevá-lo a fim de aliviar as dores de um linfedema. Só que isso havia acontecido há quase 15 anos. O século XX tinha acabado e ainda havia médicos querendo realizar em mim o mesmo tipo de cirurgia. “Primeiro se trata a doença. Estética se vê depois.”
Estética o cacete!!!!
Não dava para crer que com tanta tecnologia nada havia mudado nos últimos 15 anos com relação ao tratamento de câncer de mama. Eu não conseguia acreditar nisso. Ainda bem! E busquei, até encontrar, uma equipe médica cujo pensamento estivesse alinhado com o meu: uma mulher jovem enfrenta melhor o tratamento com a mama reconstruída.
E pra mim, mulher independente que havia perdido toda a sua autonomia desde o diagnóstico da doença, fiz questão de participar das decisões relacionadas ao meu tratamento. Minha equipe médica me apresentou as alternativas e eu fiz escolhas que foram respeitadas: escolhi uma cirurgia em que a glândula mamária toda fosse removida, ao invés de uma cirurgia conservadora (e essa decisão se mostrou muito acertada, posteriormente); se houvesse possibilidade de se preservar a pele da mama, mamilos e linfonodos, que eles fossem preservados; e a reconstrução seria feita com um músculo abdominal e não com prótese mamária, numa única cirurgia.
A possibilidade de exercer escolhas representou uma pequena ilha de autonomia num mar de servidão no qual eu mergulhara involuntariamente. E autonomia, no universo do câncer, é artigo de alto luxo!

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Cabelo é o de Menos!!!!!


Quando você ler este post, para que não pense que estou com câncer, contextualizarei minha história: tive câncer de mama em 2009. Nesse mesmo ano ano iniciei o tratamento e terminei a primeira parte em 2010. Em agosto de 2014, quando escrevo para o blog, me sinto curada e gratíssima a Deus por isso.
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Esta aí em baixo sou eu, no dia de cortar os cabelos, depois de ter chorado rios de lágrimas, escondido, é claro!

 


E estes eram os cabelos que eu tanto amava, e que chegaram aos 36 anos sem química alguma. Meu xodó.




Aniversário de 37 anos, já de cabelos curtos, uma semana antes deles me abandonarem. E meu filhinho que tinha 2 aninhos e 9 meses.

 
 
 
Minha amiga Cidinha, que também teve câncer de mama, e veio raspar meus cabelos quando eles começaram a cair, alguns dias depois da primeira sessão de quimio.
 



Careca, me sentindo exótica e linda, no início do tratamento. Observem o valor dos cílios e sobrancelhas.
 



Eu inchada, já sem cílios, quase sem sobrancelhas, me sentindo feia D+, depois da 6ª e última sessão de quimio. Só fiz essa foto porque queria registrar as fases do tratamento.




Bem inchada, com os cabelos voltando pra minha cabeça, 2 meses após última quimio. 
 
 
 
 
 Aniversário de 38 anos, 8 meses após a última quimio, com os cachinhos de volta.
 


Foto atual, com 41 anos, mas com cabelos novinhos: apenas 4 aninhos...




Era a última sexta-feira de novembro de 2009.

Sábado eu estaria em férias com meu marido e filho de 2 anos.

Fui ao médico para receber o laudo de uma biópsia. Cerca de um mês antes, num exame periódico, descobri um cisto complexo na mama – algo como uma bexiga cheia de água com um tumorzinho sólido dentro. Eu estava com 36 anos, e os médicos que me atenderam disseram que não devia ser nada grave, mas não era o tipo de cisto que deveria permanecer em minha mama. Eu queria discutir com o médico como seria o procedimento da retirada do cisto, e já combinar uma data para depois do período de férias escolares.

Quando me sentei à mesa do consultório, o mastologista me estendeu o papel com o laudo de meu exame. Meus olhos percorreram o papel em busca do resultado: “carcinoma ductal invasivo Grau 3”.

As primeiras palavras que escaparam de minha boca, instantaneamente, foram:

- Vou perder meus cabelos?

Não me considero uma pessoa fútil. Mas minha primeira dúvida, medo, pavor, temor, angústia, ou sei lá o que era, aquela que brotou do fundo de minha alma se relacionava aos cabelos. Algo dentro de mim, do mais profundo do meu ser, do meu inconsciente, subconsciente, sei lá de onde, não se preocupou com a dor, o sofrimento, a morte, as consequências... mas sim, com os cabelos. Por que será?

Será que os cabelos são o que menos importa?

Evidentemente, depois senti medo de morrer, de sofrer... mas naquele momento eu não me sentia doente. Tinha um caroço em meio seio direito, mas de resto, estava tudo normal.

Minha mãe havia tido câncer de mama e morreu com metástases múltiplas quando eu tinha 22 anos. Desde então, a cada seis meses eu ia ao médico fazer exames preventivos. A princípio eu era meia neurótica. Achava que repetiria a história de minha mãe, que seria apenas uma questão de tempo. Quando descobri que somente 10% dos casos da doença são hereditários, relaxei. Continuei a fazer meus exames, mas já sem medo. Certamente eu estaria entre os 90% da população que não possui carga genética modificada.

Nem todos os quimioterápicos derrubam os cabelos, mas os do câncer de mama com certeza detonam qualquer cabeleira. E uma única sessão é suficiente para causar um grande estrago.

“Cabelo é o de menos!”

Devo ter dito isso às muitas mulheres de minha vida que descobriram ser portadoras dessa doença. Talvez você também tenha dito o mesmo. Mas eu não gostava de ouvir essa sentença de ninguém.

Percebi que as pessoas ao meu redor não aceitavam o fato de eu estar com uma doença super grave, que provoca muito sofrimento e pode levar à morte, e demonstrar tristeza pelos meus cabelos. O que ninguém entendia é que o câncer é uma doença que provoca muitas perdas. Em mim levou as duas glândulas mamárias, os dois ovários, as duas trompas, meu útero, os cabelos, só para falar em coisas mensuráveis. Me fez perder uma das melhores fases de meu filho e muitas primeiras coisas que ele fez, além do elo que tínhamos, ele e eu, que nunca mais foi o mesmo... Foram 5 cirurgias, muitos pós-operatórios, muito tempo acamada e perdas imensuráveis.

Os cabelos são como a gota d’água que transborda um copo que já está cheio.

Como não podia falar disso com ninguém, passei a chorar por esse motivo sempre que estava sozinha. Uma semana depois minhas lágrimas secaram. Por esse motivo, que fique claro!

Comecei a pensar que proveito poderia tirar dessa experiência. Me decidi a cortar os cabelos curtos. Eu os usava longos já há uns vinte anos e morria de medo de que curtos eles ficassem muito armados. Mas como iriam cair de qualquer jeito, não tinha mais nada a perder. Então fiz várias fotos para me lembrar de como eles eram, e dezesseis dias depois de meu diagnóstico, pedi ao meu cabeleireiro que os cortasse.

Havia, enfim, descoberto que houve um tempo para ter cabelos longos, haveria um tempo para tê-los curtos, outro tempo para não tê-los...

Mas voltando aos comentários, quando alguém me dizia que “cabelo é o de menos”, eu sentia uma raiva tão grande, que sentia vontade de responder:

- Teu C...! Cabelo realmente é o de menos! O de menos na minha cabeça, porque na sua não vai faltar!!

Sei que as pessoas queriam apenas me consolar, mas não consolavam. Só invalidavam meus sentimentos como se, por ter câncer, eu estivesse proibida de me entristecer por uma coisa tão fútil! Poderia sofrer pelas dores que me aguardavam, pelo medo da morte, por minha vida, meu filho, mas por cabelos, NÃO!

Uma amiga me perguntou o que seria mais adequado  dizer a uma pessoa que acabou de saber que está com câncer. Há anos penso na pergunta dela, e acho que só agora cheguei a uma resposta. E a resposta que eu gostaria de ouvir das pessoas ao meu redor era:

- Puxa, que doença terrível essa! Quase não dá para acreditar que você perderá seus cabelos. Sei que você gosta demais deles e os cuida muito bem. O lado bom é que quando tudo acabar e você estiver curada, pelos menos os cabelos voltarão a crescer!

Sugiro que antes de disparar inconsequentemente “Cabelo é o de menos!”, você faça duas perguntas à mulher que acabou de descobrir que está com câncer:

- Quanto tempo você gasta por dia para arrumar seus cabelos?

- Quanto dinheiro gasta para cuidar deles?

Se essa mulher tiver que secar os cabelos antes de sair de casa, se for adepta da tintura, luzes ou mechas, escova progressiva ou definitiva, então os cabelos são muito importantes para ela. Fazem parte de uma identidade visual, são a moldura da beleza e contribuem para que a autoestima dela esteja em alta. E o tratamento do câncer provoca tantas mudanças no organismo que empurra a autoestima de qualquer pessoa para abaixo de zero. Além do que, uma mulher careca é sinônimo de câncer. As doenças mais comuns que conhecemos ficam guardadas dentro do doente, discretamente. O câncer faz questão de estampar sua existência e anunciá-la ao mundo por meio da ausência de cabelos e do inchaço típico dos corticoides.

Mesmo que você pense que “cabelo é o de menos”, talvez não seja necessário dizer essa verdade a uma pessoa que está prestes a perder muitas coisas... inclusive seus cabelos.