segunda-feira, 19 de março de 2012

A Vontade de Deus


Este post é dedicado à Vi, com saudade de irmã.




O tempo passa e fica muito divertido perceber as mudanças que se processam em nossa vida. Desde criança eu trazia em minha alma a sede pelos aspectos espirituais do ser humano. Olhava para o céu e ficava horas imaginando que deveria haver um ser muito grande e poderoso comandando toda a criação. Sim, comandando, pois minha inteligência não permitia imaginar nada existindo por si só e cumprindo uma função na natureza simplesmente por existir.

Eu sentia sede de pertencer a algo maior e mais significativo do que existir, pura e simplesmente. Devia haver um porquê para cada coisa existente no mundo, eu entre elas. E a busca pelo meu porquê me consumia. Eu lia a Bíblia quase todos os dias, fazia orações, ia à igreja, participava de retiros e de suas atividades intensamente na ânsia de me aproximar das respostas que eu buscava: por que existo? Qual a minha missão na vida?

Já na fase adulta, conheci a Renovação Carismática Católica e nela encontrei uma expressão de fé alinhada com as que meu espírito desejava demonstrar. Participei de uma Experiência de Oração, que é um retiro normalmente realizado num durante um final de semana, onde os participantes ficam internos no seminário. O objetivo é fazer com que cada um tenha uma experiência particular com Deus por meio da oração pessoal. Foi lá que ouvi falar da "vontade de Deus" e descobri que Deus me amava tanto que havia me criado com um propósito especial. Admito que me senti a tal! Só restava agora descobrir qual era o tal propósito, o que se revelou uma tarefa nada fácil.

Ao final da Experiência de Oração, minha sede espiritual, ao contrário do esperado, havia aumentado. Sem perceber, engoli a pomba do Espírito Santo com pena e tudo. Essa expressão significa que vivenciei a experiência de oração tão intensamente que me achava deslumbrada com a possibilidade do Reino do Céu. Daí em diante passei a perseguir a "vontade de Deus" com afinco ainda maior do que nunca. Eu trabalhava e estudava com um ser humano normal, mas no background de meus pensamentos havia uma lupa encarregada de investigar, de descobrir qual era a "vontade de Deus" para cada passo que eu tivesse que dar. Passei a enxergar Deus e suas manifestações em absolutamente tudo: nas pessoas que conviviam comigo, nas ações da natureza, nas contrariedades, nos acertos, em TUDO mesmo. E minhas conclusões pessoais acerca do eu achava que era a "a vontade de Deus" para minha vida guiaram meus passos e minhas escolhas, que variavam desde de comprar um par de sapatos passando pelo namorado e o apartamento.

O tempo foi passando e esse estilo de tomada de decisões baseado na "vontade de Deus", muito embora eu tivesse um grande desejo de permanecer  dentro dela para evitar todo tipo de fracasso, me trouxe situações indesejáveis. Era como se, com o passar do tempo, a linguagem de Deus para comigo fosse se transformando num idioma completamente desconhecido. E num belo dia eu não conseguia mais me comunicar com Ele para descobrir o que Ele queria que eu fizesse.

Para ser coerente, tenho que admitir que minha busca incessante de tentar descobrir e realizar a "vontade de Deus" em minha vida a todo momento pode ser chamada de presunção, e daquelas bem grandes. Quem sou eu para me revestir da convicção de conhecer o divino de forma tão arrogante? 

Se Deus tem uma "vontade" ou um "propósito" para minha vida, que seja muito personalizada, ainda não descobri. Estou chegando aos 40 anos, e ainda não encontrei as respostas que eu gostaria para os meus questionamentos. Com os erros e acertos cometidos à luz de minha fé renovada, com muito trabalho, boa vontade, pouco estudo e aprofundamento superficial,  aprendi que o crescimento e o amadurecimento exigem novas habilidades de cada um de nós. Os bebês recebem leite, já os adultos, comida sólida.

Inevitavelmente eu cresci e por opção, amadureci. Percebi que Deus nos deu uma série de dons, a inteligência entre eles, para nos guiar e nos auxiliar em nossas escolhas de vida. E Deus, que tanto nos ama, abençoa nossas escolhas; nem todas da forma como gostaríamos. 

Hoje eu tenho meus sonhos, me questiono se são íntegros, se sua realização não vai causar prejuízos a ninguém, e peço a benção de Deus, sem presumir conhecer TUDO o que Ele planeja para minha vida, caso contrário, onde estaria meu livre arbítrio?

Muitas vezes estive às voltas com o dilema vontade de Deus X livre arbítrio. Uma coisa não combina com a outra. Se Deus tem uma vontade pra minha vida, penso que ele me predestinou a viver algo, e nascer com o destino definido não nos dá margem para fazer escolhas, para exercer o livre arbítrio. Se não cai um único fio de cabelo de minha cabeça sem que Deus permita, isso quer dizer que se eu me decidir raspá-los, ou a cortá-los bem curtinhos, ou arrancá-los num acesso de fúria, tudo isso reflete a vontade de Deus para os meus cabelos? Será que Deus tem um propósito até para os meus cabelos? Todas as minhas ações refletem a vontade de Deus?

Finalmente em 2009 encontrei o livro Cartas Entre Amigos. Trata-se de uma sequência de cartas trocadas entre dois amigos ilustres: Pe. Fábio de Melo e Gabriel Chalita. Numa das cartas ao amigo sacerdote, Gabriel diz o seguinte:

"Um lápis nas mãos do Senhor, padre Fábio. Você gosta dessa definição? Não creio que Madre Teresa quis usá-la ao pé da letra, mas em um exercício de amor feito serviço. Em sua carta, amigo, você disse das incorreções de incutir em Deus a responsabilidade pelas escolhas dos homens. Há quem faça isso se valendo do preceito de que não cai uma folha da árvore sem que Deus queira. Parece-me que o correto é sem que Deus saiba, não sem que Deus queira. Ou estou errado? A onisciência divina faz com que Ele tenha consciência de tudo o que se passa nas escolhas humanas, mas Ele respeita essas escolhas, senão não seríamos humanos. E máquinas é o que não somos!
O destino, como uma linha desenhada por Deus sem que tivéssemos possibilidades diferentes das planejadas, seria um reducionismo da inteligência humana. Voltando a Sartre, estamos condenados à liberdade. Liberdade e destino não combinam. Escolhemos, portanto, a nossa história e somos os responsáveis pelos erros e acertos. Somos um lápis nas mãos do Senhor quando decidimos fazer as coisas como se Ele as fizesse."
(do livro Cartas Entre Amigos, escrito por Padre Fábio de Melo e Gabriel Chalita. São Paulo: Ediouro, 2009 - páginas 44 e 45)

O mensagem que saciou a sede de meu coração, também lançou uma luz sobre minhas escolhas pretéritas - foram baseadas em premissas equivocadas. Se traduziram em boas escolhas porque estavam alicerçadas no desejo de que eu me tornasse um ser humano melhor e capaz de viver uma vida moralmente correta, de acordo com os princípios cristãos.

Tudo isso posto, volto à experiência do câncer.
Inúmeras vezes ouvi pessoas queridíssimas, e outras nem tanto, me dizerem algo equivalente a:

- FOI VONTADE DE DEUS! VOCÊ TINHA QUE PASSAR POR ISSO!

Para não baixar o nível, não escreverei as palavras que posso expressar por PQP (cuja tradução também pode ser PONTE QUE PARTIU)! Mas elas são as únicas que traduzem meu sentimento quando ouvia esse tipo de sentença. Prefiro crer que as pessoas que diziam isso tinham o desejo de me consolar, afinal, viver algo muito ruim talvez seja mais fácil se o indivíduo acreditar que Deus, que o ama, quis que assim fosse feito. Mas daí voltamos para um Deus que nos criou com um destino determinado, como se cada acontecimento fosse uma sentença prevista.

Fico imaginando Deus durante a obra da criação:
- Bom, a Fabiana vai ter um filho lindo e saudável, mas logo depois eu vou mandar um câncer pra ela! O Thiago vai ter lindos olhos verdes mas vai ser paraplégico por toda a vida! Já o Heitor vai perder um dos braços aos 11 anos num acidente de moto!... e assim por diante!
Ora, a catequese da Igreja Católica sempre usou a metáfora PAI na tentativa de explicar Deus às crianças. E aprendi que Ele é o Pai mais amoroso do mundo!

Eu sou mãe. Quando vejo meu filho de 4 anos rindo, sou invadida pelo desejo de que aquele riso o acompanhe por toda a vida. Quando o vejo dormindo e posso abraçá-lo, sinto vontade de criar uma redoma ao redor dele que barre todo tipo de sofrimento que ele possa ter durante sua vida. Quando suportei os efeitos da quimioterapia em meu corpo, passei tão mal e senti tantas dores, que olhando pro pequeno Alexandre eu agradecia a Deus pela doença ter acontecido comigo e não com ele. E notem, eu sou apenas um ser humano cheio de defeitos que erra até quando pretende acertar. Nem assim desejo sofrimento algum ao meu filho. Tudo isso torna IMPOSSÍVEL, para mim, crer que o Deus no qual deposito minha fé, tenha tido esse tipo de vontade para minha vida.

Quando ouvia alguém falar da vontade de Deus, eu sorria e continha todos os impulsos de responder:
- Caramba, eu nem quero conhecer esse teu deus, porque ele é cruel pra caramba! Ainda bem que o Meu não faz isso com ninguém! 

Eu sou um ser humano e, portanto, estou sujeita a todas as mazelas da humanidade: doença, sofrimento, dores, desilusões, sonhos não realizados, dificuldades financeiras, problemas familiares e tudo o mais. Se Jesus não foi poupado da dor física, da traição e da morte, porque eu o seria? 
E aí reside a grande diferença entre crer e não crer em Deus: durante todo o tratamento que envolveu cirurgia, pós-operatório, recuperação, sessões de quimioterapia, perda de cabelos, das sobrancelhas, da identidade visual, da auto-estima, crise conjugal, eu me sentia acompanhada, amparada, e tinha a certeza de que tudo daria certo. Bastava que eu marcasse meus três pontos! Quem não crê em Deus passa por tudo isso sozinho, e eu não quero nem pensar em como seria minha experiência sem Ele.

Olhando profundamente para mim mesma chego à conclusão de que não conseguiria viver sem Deus, tanto que, se Ele não existisse, como eu creio que Ele existe, eu ousaria inventá-Lo.



4 comentários:

  1. Fabiana, acreditar em Deus é algo saudável, e acreditar que somos livres e amados por Ele é uma força incrível. Portanto, nossas escolhas são únicas e por isso devemos ser os protagonistas da nossa história. Diante das dificuldades da vida, podemos ficar parados esperando o pior chegar ou realizar nossa missão de viver a cada dia como único, na constante busca de amar e ser amado!

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  2. Fabiana, isto tudo é muito lindo! Traduz as nossas dúvidas, que passamos em algum momento de nossas vidas. Também passei por isso. Tinha medo desse Deus e de como Ele olhava pra mim. Eu era evangélica por livre e espontânea pressão de meu pai. E não encontrei as respostas lá. Em um amargo momento de minha vida, busquei mais uma vez respostas, desta vez no Espiritismo. E encontrei. E trouxe paz ao meu ser até hoje. É importante buscar, aonde quer que seja, sua verdade.

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  3. Simplesmente lindo Fabi!!!
    Que o nosso bom Deus sempre a proteja e ilumine.
    Carlinha

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